O QUE É FICÇÃO

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O livro “O que é ficção” da professora Ivete Walty inicia com um pequeno questionamento: “Aí não tem ficção?”. Com o exemplo da criança que não entende o termo ficção e o relaciona com os discos voadores das histórias contadas pelos adultos, a autora justifica o interesse e a necessidade de se refletir a relação entre realidade e ficção; e a função da ficção em nossa sociedade.

No segundo excurso a autora distingue três acepções de ficção: a) ficção científica - “narrativas geralmente verbais ou fílmicas, cujo enredo se baseia no desenvolvimento científico e nas situações decorrentes de tal desenvolvimento no tempo e no espaço”. Nesse sentido cita alguns livros e filmes que durante a época de sua elaboração visualizam um futuro mais moderno: Vinte mil léguas submarinas, Admirável mundo novo, 1984... b) ficção ligada a arte (pintura, literatura, teatro, cinema...); cita Platão e diz que ele considerava a arte inferior às outras manifestações do conhecimento, já Aristóteles reconhece a importância da arte e até sua superioridade em relação à ciência. “Ficção seria, pois, criação da imaginação, da fantasia, sem existência real, apenas imaginária”.

No terceiro capítulo a partir de outro questionamento: “A realidade da ficção ou a ficção da realidade?”, cita uma passagem de um texto de Machado de Assis no qual um pássaro vive preso e depois por meio de um homem que o compra descobre aos poucos a liberdade. Com isso, a autora demonstra que “a visão de mundo das pessoas varia de acordo com o lugar que cada uma ocupa no espaço geográfico, social, econômico etc. Depois lembra uma discussão realizada entre ela e um senhor sobre ricos e pobres. Para o senhor os pobres só existiam devido aos ricos, pois os ricos ofereciam empregos aos pobres. Posição essa contrária a da autora. Para ela, os pobres é que sustentam os ricos através da sua força laboral (nessa perspectiva cita Marilena Chauí retomando Marx e Althusser, para assim, discutir a questão do domínio ideológico. E a partir daí perguntar mais uma vez: “Onde está a ficção? Como vivemos com ela?”. E ainda discutir a questão do simulacro em Platão e Deleuze. “Deleuze faz a chamada reversão do platonismo, quando salienta que a função do simulacro é subverter a ordem hierárquica de modelo, cópia e simulacro, mostrando que tudo é simulacro, tudo é representação, ou seja, tudo são sombras. O fato de existir o simulacro nos permite discutir a legitimidade tanto do original como da cópia”.

No texto “Uma faca de dois gumes”, a autora discute a função dos termos ficção significando criação e do termo produção que é o oposto, repetição. Dentro desse contexto, mais adiante ela enfatiza a função da ideologia dominante e relaciona o comportamento das pessoas ao senso comum: “Pessoa de bom senso é a pessoa que age de acordo com a ideologia dominante, as outras são loucas, sonhadoras, irresponsáveis, preguiçosas etc.

Depois nesse mesmo capítulo a autora recorre a Freud (id, ego, superego) e Marcuse (mais-repressão) para explicar os mecanismos de controle das sociedades industrializadas e assimila Marx para dizer que “o trabalho do qual homem não retira nenhum prazer é a maior forma de controle do princípio da realidade nesse tipo de sociedade”. Segundo a autora Freud mostra que o princípio do prazer é resgatado através da fantasia. “Aí é que está a faca de dois gumes: o sistema sabe se aproveitar também dessa necessidade de fantasia do homem”.

Através da análise do discurso tele-novelístico e do cinema a professora Ivete demonstra que a dominação ideológica se faz também nos momentos de descanso por exemplo pelo bombardeio publicitário durante o que é exibido na T.V. “Essa ficção mata aquilo que deveria ser sua essência, a magia, a poesia, a criação, e instaura o senso comum, o bom senso”. “Usa-se a necessidade de prazer, de fantasia para se impor a repressão, a verdade oficial”.

Então, pergunta mais uma vez a autora: “Seria a tão decantada arte uma saída?”. Faz assim uma comparação entre a arte que está associada ao conhecimento racional, imune às emoções: “A ficção pode ser a saída, a libertação, a absoluta denúncia ou a reduplicação do real a que está submetida”.

Na metade do livro a autora propõe que “passemos a ler o mundo tanto o dado como real, como o dado ficcional, e procuremos abalar os limites que dividem os dois”. Ao final do capítulo “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come” a autora lembra que: “o texto ficcional é o simulacro, a potência que nega tanto o modelo quanto a cópia, logo, é preciso olhá-lo como parte integrante do viver humano...”.

Seguindo em “De textos e textos”, discorre a importância do discurso mítico: “É importante ressaltar que as personagens míticas integram nosso real de forma efetiva”. Descreve sobre o texto onírico (os sonhos): “enriquecedor é considerar o sonho como um texto produzido por nós, em que nós atuamos e vemos atuar a sociedade”. Ainda considera que nós mesmos somos textos a sermos lidos, sujeitos a várias leituras. A palavra personagem vem de persona, máscara grega utilizada na representação das tragédias e comédias. Somos personagens sociais. Logo após a autora faz uma análise sobre a literatura e segundo ela “constatamos que todos os critérios utilizados para se conceituar literatura são relativos, e devemos lidar com eles como operadores para efetuar a leitura dos textos e a leitura do mundo, cientes de sua relatividade”.

Após a análise dos discursos marcados pela ficcionalidade, pela representação, pela criação a professora propõe a análise dos discursos que têm o estatuto de verdade. Então começa pelo discurso histórico. O que é história? Discorre que: “A história escrita nos livros, ensinada nas escolas é, geralmente, a versão oficial que interessa ao Poder, logo, reproduz o interesse da ideologia dominante. Os indivíduos esquecem-se que são os sujeitos da história, limitam-se a desempenhar o papel de objeto. A autora cita Guimarães Rosa: “a estória não se quer história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes quer-se um pouco parecida à anedota”.

Assim, os textos histórico, jornalístico e publicitário envolvem elementos de diferentes ordens: a ideologia do órgão emissor, do patrocinador, o tipo de público etc. “As imagens são vibrantes, o som convidativo e as palavras sedutoras”. Através desses discursos criam-se ambientes de competição, e você quer exibir o seu Poder de compra, seduzir outras pessoas.

No último capítulo “Cada coisa em seu lugar, cada macaco no seu galho”, a autora argumenta que “nossa sociedade se estabelece sobre uma cisão, sobre um corte, uma ruptura: a separação entre o saber e o fazer”. A história fica sendo algo muito distante de cada cidadão (o discurso verdadeiro, intocável, irrefutável). Na escola, ensina-se a norma culta da língua, a língua da classe dominante, ensina-se a matemática, a física, a química etc. Como coisa feita, preestabelecida para atingir os objetivos da classe dominante. O aluno que não se adequa a tais ensinamentos é chamado de burro, ignorante, incapaz, desajustado, problemático; é sufocado, massacrado”.

Assim a ficção “é uma forma de saber, de Poder e se chegar a ameaçar o sistema ele a exclui ou assimila. Assim, um discurso-denúncia pode ser esvaziado, neutralizado como se desativa uma bomba que pode destruir tudo o que se encontra à sua volta”. “A ficção é um discurso tão digno de crédito como outro qualquer, porque, como qualquer outro, ela faz uma leitura do real. Reduplicadora ou contestadora, não importa, mas uma leitura tão confiável quanto a da ciência ou da história”.

Ivete Walty termina o seu livro com a seguinte afirmativa sobre a ficção: “Narrativa verossímel ou absurda, não interessa, o que importa é o real re-velado por ela, e, mais ainda, sua atitude crítica enquanto leitor, ouvinte ou espectador.

DÚVIDAS SOBRE O IMAGINÁRIO

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No livro “Dúvidas sobre o imaginário”, o filósofo Gilles Deleuze discorre sobre a diferença, o paradoxo existente entre o cinema do pré-guerra e do pós-guerra. Segundo Deleuze, existem algumas características que identificam as transformações ocorridas nos filmes antes e depois da Segunda Grande Guerra Mundial. Dessa maneira, cita como exemplo o modelo do cineasta soviético Serguei Mikhailovitch Eisenstein: “Einsenstein fez desse circuito imagem-todo, onde um relança o outro: o todo muda ao mesmo tempo em que as imagens se encadeiam. Ele invoca a dialética”. Percebemos com essa citação que, além de uma análise filosófica da linguagem cinematográfica, Deleuze analisa também as técnicas utilizadas por essa indústria. Ainda comenta que a Teoria Eisensteiniana corresponde a um modelo que representa uma Totalidade Aberta e isso significa que procura dessa forma relações comensuráveis ou cortes racionais entre as imagens, na própria imagem e entre a imagem e o todo. Segundo o autor, Eisenstein primava pelo visual fazendo do sonoro uma nova dimensão, uma quarta dimensão admirável que complementava o restante da arte cinematográfica. Esse modelo buscava assim uma dialética entre a Interiorização e a Exteriorização, numa relação de desenvolvimento da mudança do todo e, consequentemente, do encadeamento das idéias que na prática corresponde à relação plano-montagem. Segundo Deleuze, Eisenstein ainda montava seus raccords de acordo com o número de ouro. O número de ouro ou razão áurea ( - Phi) é um número irracional misterioso e enigmático que nos surge numa infinidade de elementos da natureza na forma de uma razão, sendo considerada por muitos como uma oferta de Deus ao mundo, equivalente ao valor de:

Já o cinema pós-guerra, Deleuze acredita ser um cinema sem maiores preocupações com a racionalidade, pois esse cinema rompe com o modelo da Totalidade Aberta, fazendo emergir todos os tipos de cortes irracionais, de razões incomensuráveis entre as imagens (signos). Deleuze então explica que os falsos raccords se tornam a lei. E se dessa maneira os cortes irracionais se tornam essenciais, ocorre então uma inversão de valores na arte cinematográfica: “o essencial não é mais a imagem-movimento, é antes a imagem-tempo”. Sendo assim, o cinema falado do pós-guerra vai em direção a uma autonomia do sonoro; para um corte irracional entre o sonoro e o visual. “Não há mais totalização, porque o tempo já não decorre do movimento para medi-lo, porém se mostra nele mesmo para suscitar falsos movimentos”.

Mas segundo Deleuze, essa diferença dos modelos pré-guerra e pós-guerra não se faz tão importante, pois o cinema terá quantos modelos forem necessários de acordo com a época, a História, seus ritmos etc. O que importa para Deleuze são as ressonâncias. Fazendo uma comparação com a Filosofia, Deleuze explica que tanto o cinema quanto a Filosofia possuem trocas mútuas independente de qualquer primado geral. Para Deleuze, a relação cinema-filosofia é a relação imagem-conceito. E, de forma dialética, as imagens e o conceito se formam e se modificam. Por exemplo: “o cinema tentou entender como funcionam os mecanismos do pensamento, mas ele não é nada abstrato para isso, ao contrário”.

Deleuze responde ainda em suas palavras sobre o imaginário algumas questões sobre as Ideias. Para ele, as ideias não são mais que instâncias que se fazem nas imagens, nas funções e nos conceitos. As imagens se fazem signos. Segundo Deleuze, o cinema é como se fosse um passo de mágica, pois primeiramente o cinema é imagem-movimento, e nem sequer existe uma relação entre imagem e movimento, mas o cinema cria o automovimento da imagem. Então, o que interessa realmente, não é visualizar se o cinema tem uma pretensão de entendimento do universal, mas sim do singular. Pois a imagem, o signo, se define pelas suas singularidades, tanto nos cortes racionais da imagem-movimento quanto nos irracionais da imagem-tempo.

Continuando a discorrer acerca das dúvidas sobre o imaginário, Deleuze questiona se o imaginário é um bom conceito. Para ele existem dois pares de conceitos fundamentais para a compreensão do cinema: “o real e o irreal” e o “verdadeiro e o falso”. Como exemplo cita o fenômeno cristalino, no qual existe uma troca entre o límpido e o opaco. É preciso discernir sobre esses conceitos e o discernimento surge a partir do momento em que enxergamos que “o falso não é um erro ou uma confusão, mas uma potência que torna o verdadeiro indecidível”.

Sendo assim, o imaginário está na encruzilhada entre esses dois pares, pois o imaginário é a indiscernibilidade entre o real e o irreal. Ainda para o filósofo, o imaginário é um conjunto de trocas. Imaginar é fabricar imagens. Deleuze não acredita numa especificidade do imaginário, ele acredita, respectivamente, num regime orgânico das imagens que corresponde à imagem-movimento, um modelo de verdade; e em outro regime cristalino que substitui o modelo de verdade pela potência do falso como devir. Com relação a esses aspectos exemplifica citando Nietzsche: “Nietzsche é o exemplo de um discurso filosófico que se precipita em num regime cristalino, substituindo o modelo verdadeiro pela potência do devir, a organização por uma vida não orgânica, os encadeamentos lógicos pelos reencadeamentos páticos, libertinos (aforismos)”. Portanto Deleuze considera através de suas análises que, o que pretende na verdade não é uma análise do imaginário, mas uma análise do regime de signos num sentido taxonômico, uma classificação das imagens e ou dos signos.


DELEUZE, Gilles. Dúvidas sobre o imaginário. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.