RESUMO: Pretendemos
a possibilidade de uma nova verdade que não seja apenas calculista,
racionalista e projetável, mas poética e ecológica. Os conteúdos racionalizados
e burocratizados proporcionam o destaque no modo de vida tecnocrático e mantém o status
quo, pois: “a técnica funciona”. Considerando que os cálculos e projetos da
humanidade transformam tudo em coisas, passamos a analisar este universo
coisificado como sendo a única verdade. Expulsamos os poetas, valorizamos o
pensar calculista e todo o resto está rapidamente sendo esquecido. Na
“Introdução à Metafísica”, Heidegger salienta que o ser no domínio do cálculo
torna o ente apto a ser subjugado pela técnica moderna matematicamente
estruturada, que se distingue Essencialmente
de todo o uso de instrumentos até então conhecido.
PALAVRAS-CHAVE: Crítica.
Técnica. Poesia. Tradição. Heidegger. Hölderlin.
1 INTRODUÇÃO
O avanço científico-tecnológico e o
consumo são consideravelmente duas das principais características das
sociedades contemporâneas. Em conjunto formam as bases das sociedades
globalizadas e o sustentáculo da padronização dos modos de vida em todo o
mundo. Heidegger (1996) em seu texto “A questão da técnica” discute o poder que
a técnica tem de provocar um enorme desencobrimento das riquezas do planeta,
constituindo o que podemos chamar de verdade exploradora.
A técnica não é, portanto, um simples meio. A
técnica é uma forma de desencobrimento. Levando isso em conta, abre-se diante
de nós todo um outro âmbito para a essência da técnica. Trata-se do âmbito do
desencobrimento, isto é, da verdade. (HEIDEGGER, 2008, p. 17).
“O desencobrimento, que rege a técnica
moderna, é uma exploração que impõe à natureza a pretensão de fornecer energia,
capaz de, como tal, ser beneficiada e armazenada.” (HEIDEGGER, 2008, p. 19). O
fetichismo proporcionado pela técnica e a magia com que essa essência conduz a
atividade produtora da sociedade deixa os homens fascinados pelo poder técnico e
inocentemente ainda depositam na técnica a esperança de um mundo melhor.
Seria então a realidade
técnico-científica a única verdade (Alétheia)?
Estaríamos abertos a experimentar o que ainda não foi experimentado? Nosso
trabalho aqui é parte de uma pesquisa sobre o universo técnico-cibernético;
crítica à metafísica tradicional através das enunciações de Heidegger e
proposição de uma nova verdade que não seja apenas calculista, racionalista e
projetável, mas poética e ecológica na perspectiva de Hölderlin citado por
Heidegger (2008, p. 37): “Ora, onde mora o perigo, é lá que também cresce o que
salva.”
2 NECESSIDADE DE
INVESTIGAR A TÉCNICA
Galimberti (2006) em suas análises sobre
os textos de Arnold Gehlen, afirma que o homem é um ser biologicamente carente,
pois em comparação com qualquer outro animal, o homem necessita de cuidados
especiais ao deixar o ventre da mãe: “O animal in-siste num mundo que para ele já está preordenado, ao passo que o
homem ex-siste, porque está fora de
qualquer pré-ordenação e, por efeito dessa sua ex-sistência, é obrigado a construir para si um mundo”.
(GALIMBERTI, 2006, p. 83). Verifica-se então que o sentido da técnica está aí:
[...] em reconhecer para além do ambiente atual um
ambiente possível, um ambiente que se desenha não por uma intuição da alma, mas
porque a ele conduz a cadeia dos instrumentos construídos um depois do outro,
segundo aquela modalidade que, em todos os pontos da série, permite descobrir
um outro mundo”. (GALIMBERTI, 2006, p. 91)
Heidegger (1996, P. 167) nos diz que é
nesse Ek-sistindo que o homem in-siste em errar. O homem provocou a
secularização da técnica e a trata como um ente necessário e superior. Andar
com o celular aos ouvidos ou dormir com o Portable On Demand no beiral
da cama tornou-se prática ostensiva para a continuidade das funções diárias. O
aparato técnico com o seu vigoroso potencial exploratório das matérias-primas e
a produção de armamentos atômicos, discutida por Heidegger (1996) em seu texto
“Sobre a essência da verdade”, caracterizam a nossa competência para a
destruição.
Heidegger (1996) explica que a essência
da técnica é um desvelar explorador que transforma o estado real e modifica o
meio. Dessa maneira não devemos entender a técnica apenas como a produção de
objetos, mas como uma composição ou “arrazoamento” que projeta o real como
disponível:
Com-posição, ‘Gestell’,
significa a força de reunião daquele por que põe, ou seja, que desafia o
homem a des-encobrir o real no modo da dis-posição, como dis-ponibilidade.
Com-posição (Gestell) denomina,
portanto, o tipo de desencobrimento que rege a técnica moderna [...] (HEIDEGGER,
2008, p. 24).
O nosso destino, a força
encaminhadora do arrazoamento garante a funcionalidade do sistema e as nossas
ações são determinadas pelo conteúdo técnico. Os conteúdos racionalizados e
burocratizados (técnicos) proporcionam o destaque no modo de vida tecnocrático e mantém o status quo, pois “a
técnica funciona” (GALIMBERTI, 2006). Quem estaria disposto a inverter esta
ordem? Galimberti (2006, P. 8) salienta que:
[...] a técnica não é mais objeto de uma escolha
nossa, pois é o nosso ambiente, onde fins e meios, escopos e idealizações,
condutas, ações e paixões, inclusive sonhos e desejos, estão tecnicamente
articulados e precisam da técnica para se expressar.
Durante séculos a concretização da
técnica (ciência) como forma de transformação da natureza (physis) a partir de adaptações da visão aristotélica de causalidade
(material, formal, final e eficiente) consolidando-se com o cartesianismo (cogito ergo sum),
o iluminismo e o positivismo coisificaram
o mundo e os homens. Como resultado da produção técnica, transformamos tudo em
coisas e a principal matéria-prima somos nós mesmos.
Pensar a coisa, como coisa, significa deixar a coisa
vigorar e acontecer em sua coisificação, a partir da mundanização de mundo.
Pensando, destarte, nós nos deixamos manejar pela vigência mundanizante da
coisa. Tornamo-nos, então, no rigoroso sentido da palavra, ‘coisados’, isto é,
condicionados pela coisa. Deixamos então, para trás a pretensão de todo
‘incoisado’, isto é, de todo incondicionado pela coisa. (HEIDEGGER, 2008, p.
158)
Considerando que os cálculos e projetos
da humanidade transformam tudo em coisas, passamos a analisar este universo
coisificado como sendo a única verdade. Entretanto, precisamos enxergar as
coisas não como coisas propriamente ditas, mas pensar o seu sentido. “O
primeiro passo na direção dessa vigília é o passo atrás, o passo que passa de
um pensamento, apenas, representativo, isto é, explicativo, para o pensamento
meditativo, que pensa o sentido”. (HEIDEGGER, 2008, p. 159).
Heidegger (2008) propôs o entendimento
do que compõe a técnica e demonstrou que a produção técnica descobre o real
como disponibilidade, o que visualizamos hoje como um expressivo desequilíbrio
no planeta: “[...] não estamos mais nas origens e sim, ao contrário, no fim. No
fim de uma hybris, de uma
‘sobrenaturalização de uma natureza dada’” (JONAS, 2006, p. 334). O coiteiro de
Heidegger (2008) continua à disposição da indústria madeireira, dos jornais e
revistas que pré-dispõem a opinião pública ao consumo. Movimento que se torna
indefinido e aparentemente infinito: quanto mais se produz mais se consome.
Nessa perspectiva, o homem é o único ser que se projeta no futuro, produzindo
tecnologicamente imaginários irreais ou nos dizeres de Baudrillard (1991, P.
154), hiperreais:
Já não é possível partir do real e fabricar o
irreal, o imaginário a partir dos dados do real. O processo será antes o
inverso: será o de criar situações descentradas, modelos de simulação e de
arranjar maneira de lhes dar as cores do real, do banal, do vivido, de
reinventar o real como ficção, precisamente porque ele desapareceu da nossa
vida [...] antecipadamente desrealizada, hiper-realizada.
Após décadas das reiterações de
Heidegger (1996) sobre a cibernética, tornou-se ritual
nos ligarmos aos aparelhos eletrônicos. Somos programados para mantermos os
padrões exigidos pelo sistema tecnocrático e consumirmos todos os aparatos de
última geração como se isso fosse, metafisicamente, o sustentáculo da vida
humana.
O caráter específico desta
cientificidade é de natureza cibernética, quer dizer, técnica. Provavelmente
desaparecerá a necessidade de questionar a técnica moderna, na mesma medida em
que mais decisivamente a técnica marcar e orientar todas as manifestações no
Planeta e o posto que o homem nele ocupa. (HEIDEGGER, 1996, p. 97)
Não vemos muitas saídas para relações
que se dão no sentido estrito da produção, do consumo e dos interesses. E que
se tornam cada vez mais cibernéticas. Estamos
inseridos na reprodução do já reproduzido. Estamos programados. O fetiche da
técnica e o fetiche do consumo estão interligados. Galimberti (2006) escreve
que na falta de sentido é identificável a atmosfera niilista que a técnica
difundiu com uma radicalidade que vai bem além da descrição que a filosofia faz
dessa figura. E Baudrillard (1991, P. 200), inspirado em Nietzsche (2009)
afirma que:
Mas é aí que as coisas se tornam insolúveis. Pois a
este niilismo activo da radicalidade, o sistema opõe o seu, o niilismo da
neutralização. O sistema é ele também niilista, no sentido em que tem o poder
para reverter tudo, inclusivamente o que ele nega, na indiferença.
Estamos agora no mesmo nível dos
objetos, das coisas, dos programas, dos cálculos, das engrenagens, das
máquinas, ou seja, dos objetivos do sistema. Somos o sistema, somos a
finalidade, somos o Fim. “No crepúsculo, tudo, isto é, o ente na totalidade da
verdade da metafísica, encaminha-se para o fim” (HEIDEGGER, 2008, p. 63). O
sistema se aproveita dessa condição sendo indiferente porque é isso que
interessa para ele. Já não somos apenas alienados, mas nos identificamos com o
sistema.
Produção, consumo e programação são
sinônimos da falta de sentido tanto quanto da morte para a existência da vida
na Terra.
Expulsamos os poetas, valorizamos o pensar calculista e todo o resto está
rapidamente sendo esquecido. Na “Introdução à Metafísica”, Heidegger (1999)
salienta que o ser no domínio do cálculo torna o ente apto a ser subjugado pela
técnica moderna matematicamente estruturada, que se distingue Essencialmente de todo o uso de
instrumentos até então conhecido. “Enquanto imperar este estado de coisas,
jamais poderemos considerar com atenção que
e em que medida o poetar funda-se no
pensar da lembrança” (HEIDEGGER, 2008, p. 118). Funda-se no pensar da musa das
musas, a memória: Mnemosyne. Por isso
a técnica deve continuar sendo pensada.
3
A
SAÍDA DE HEIDEGGER, A POESIA DE HÖLDERLIN
É preciso entender a extensão da noção de
poesia para Heidegger (1996), considerando a poesia do poeta suábio. Heidegger (1996)
sempre refere-se à poesia no sentido amplo do termo alemão Dichtung (fabular, aproximar, juntar). Segundo Werle (2005), esse
termo ultrapassa o limite da própria arte, constituindo uma crítica à noção
moderna de técnica. Ainda segundo Werle (2005) Heidegger (1996) considera
Hölderlin, “o poeta dos poetas”. A partir da existência humana Hölderlin
captaria a essência da poesia e assim transmitiria sua mensagem para o povo. A
poesia relaciona-se com a existência humana e historicamente busca a identidade
do mundo moderno.
A questão da verdade do ser está
diretamente ligada à poesia, pois, ela seria uma maneira de desvincular-se das
categorias da metafísica tradicional. A poesia é uma maneira de escutar os
deuses. Segundo Werle (2005, p. 38) “[...] temos a possibilidade de uma
abertura do ser, uma vez que ele encontrou uma potência criadora receptiva para
acolhê-lo”. A poesia é a verdade do próprio fundamento. O discurso poético
procura combinar e diferenciar: a distância e a proximidade, o estranho e o
próprio para que o ser histórico de um povo possa ser pensado em toda a sua
extensão. Heidegger (1996) tenta assim mostrar o âmbito e os aspectos de um
novo pensamento, “o outro começo”.
Talvez nem seja por culpa do poema que já não
sentimos qualquer poder nele, mas sim pela nossa, que perdemos a capacidade de
experimentá-lo, porque o nosso ser-aí se encontra enredado numa trivialidade
pela qual é expulso de qualquer esfera de poder da arte. (HEIDEGGER, s/d, p.
28).
É preciso que saiamos da trivialidade,
do costume da tradição metafísica ocidental. “Continua a ser decisivo o facto
que a poesia é concebida como expressão da alma e da sua vivência” (HEIDEGGER, s/d,
p. 34). O poetar liberta-nos dos males feitos pela história científica que
transformou-nos em armas, em máquinas reprodutoras da repetição cotidiana,
semanal, mensal, anual [...] Tudo não passa de uma construção imposta, à qual
estamos submetidos e presos. Não sonhamos com o novo no seu sentido original,
homérico.
Heidegger (s/d, P. 37) cita o poema
“Como quando em dia santo” de Hölderlin, para exemplificar a relação da poesia
com algo maior, Deus:
Nós devemos, porém, estar sob as tempestades de Deus
Ó poetas! De cabeça descoberta
Agarrar o raio do pai com a própria mão
E oferecer ao povo, envolta na canção,
A dádiva
celestial.
Esta é a função do poeta, demonstrar a
relação natural do homem com a natureza, sendo que o homem não é diferente
dessa, mas parte integrante e que deve viver em plena harmonia, celebrando o
Ser e todos os outros entes que nos formam. A poesia proporciona a emancipação
do homem diante às enfermidades causadas pelo desenvolvimento exacerbadamente
técnico. Maneira sutil de contrapor a produção tecnológica e o seu impiedoso
consumo da alma. Segundo Heidegger (s/d, P. 39), “[...] o poeta é o fundador do
ser. Assim, o que chamamos real no nosso dia-a-dia acaba por ser o irreal”. Hoje
o real e o irreal se fundem na hiperrealidade.
Por mais que estejamos expulsos do
habitar poético ainda somos homens e povos. O homem como a poesia está cheio de
ambivalências: é e não é, está cheio e vazio, é bom e mau etc. A poesia de
Hölderlin, segundo Heidegger (s/d, P. 42) não pertence aos méritos e aos
progressos culturais, já que ele diz:
Cheio de mérito, mas poeticamente, habita
O homem esta
Terra.
Em
relação a isso Heidegger (s/d) salienta que o homem está orgulhoso de seus
feitos produtivos e sente-se cheio de méritos, mas tudo isso não diz respeito à
forma do homem habitar a Terra (Heidegger,
S/D, P. 42). Os feitos científicos, os conteúdos racionalizados, o
desenvolvimento tecnológico não são maneiras decisivas de habitar a Terra:
Nas ciências, pelo contrário, tal como noutras
coisas, o que conta é apreendermos de forma imediata o que é dito. Todavia,
para catarmos simultaneamente o essencial no dizer, não podemos balbuciar
desordenadamente alhos e bugalhos; antes, tal dizer requer da Filosofia um
rigor do pensamento e da terminologia que as ciências nunca atingem e de que
não necessitam. (HEIDEGGER, S/D, p. 48).
Pelos
resultados metafísicos, científicos, técnicos, tecnológicos é que o ser-aí,
agora, pertence aos poetas, pensadores, fundadores e criadores de um outro
começo. A poesia emancipa diante às imposições da tradição. A poesia salva do
perigo técnico-industrial, virtual e hiperreal.
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