DÚVIDAS SOBRE O IMAGINÁRIO

No livro “Dúvidas sobre o imaginário”, o filósofo Gilles Deleuze discorre sobre a diferença, o paradoxo existente entre o cinema do pré-guerra e do pós-guerra. Segundo Deleuze, existem algumas características que identificam as transformações ocorridas nos filmes antes e depois da Segunda Grande Guerra Mundial. Dessa maneira, cita como exemplo o modelo do cineasta soviético Serguei Mikhailovitch Eisenstein: “Einsenstein fez desse circuito imagem-todo, onde um relança o outro: o todo muda ao mesmo tempo em que as imagens se encadeiam. Ele invoca a dialética”. Percebemos com essa citação que, além de uma análise filosófica da linguagem cinematográfica, Deleuze analisa também as técnicas utilizadas por essa indústria. Ainda comenta que a Teoria Eisensteiniana corresponde a um modelo que representa uma Totalidade Aberta e isso significa que procura dessa forma relações comensuráveis ou cortes racionais entre as imagens, na própria imagem e entre a imagem e o todo. Segundo o autor, Eisenstein primava pelo visual fazendo do sonoro uma nova dimensão, uma quarta dimensão admirável que complementava o restante da arte cinematográfica. Esse modelo buscava assim uma dialética entre a Interiorização e a Exteriorização, numa relação de desenvolvimento da mudança do todo e, consequentemente, do encadeamento das idéias que na prática corresponde à relação plano-montagem. Segundo Deleuze, Eisenstein ainda montava seus raccords de acordo com o número de ouro. O número de ouro ou razão áurea ( - Phi) é um número irracional misterioso e enigmático que nos surge numa infinidade de elementos da natureza na forma de uma razão, sendo considerada por muitos como uma oferta de Deus ao mundo, equivalente ao valor de:

Já o cinema pós-guerra, Deleuze acredita ser um cinema sem maiores preocupações com a racionalidade, pois esse cinema rompe com o modelo da Totalidade Aberta, fazendo emergir todos os tipos de cortes irracionais, de razões incomensuráveis entre as imagens (signos). Deleuze então explica que os falsos raccords se tornam a lei. E se dessa maneira os cortes irracionais se tornam essenciais, ocorre então uma inversão de valores na arte cinematográfica: “o essencial não é mais a imagem-movimento, é antes a imagem-tempo”. Sendo assim, o cinema falado do pós-guerra vai em direção a uma autonomia do sonoro; para um corte irracional entre o sonoro e o visual. “Não há mais totalização, porque o tempo já não decorre do movimento para medi-lo, porém se mostra nele mesmo para suscitar falsos movimentos”.

Mas segundo Deleuze, essa diferença dos modelos pré-guerra e pós-guerra não se faz tão importante, pois o cinema terá quantos modelos forem necessários de acordo com a época, a História, seus ritmos etc. O que importa para Deleuze são as ressonâncias. Fazendo uma comparação com a Filosofia, Deleuze explica que tanto o cinema quanto a Filosofia possuem trocas mútuas independente de qualquer primado geral. Para Deleuze, a relação cinema-filosofia é a relação imagem-conceito. E, de forma dialética, as imagens e o conceito se formam e se modificam. Por exemplo: “o cinema tentou entender como funcionam os mecanismos do pensamento, mas ele não é nada abstrato para isso, ao contrário”.

Deleuze responde ainda em suas palavras sobre o imaginário algumas questões sobre as Ideias. Para ele, as ideias não são mais que instâncias que se fazem nas imagens, nas funções e nos conceitos. As imagens se fazem signos. Segundo Deleuze, o cinema é como se fosse um passo de mágica, pois primeiramente o cinema é imagem-movimento, e nem sequer existe uma relação entre imagem e movimento, mas o cinema cria o automovimento da imagem. Então, o que interessa realmente, não é visualizar se o cinema tem uma pretensão de entendimento do universal, mas sim do singular. Pois a imagem, o signo, se define pelas suas singularidades, tanto nos cortes racionais da imagem-movimento quanto nos irracionais da imagem-tempo.

Continuando a discorrer acerca das dúvidas sobre o imaginário, Deleuze questiona se o imaginário é um bom conceito. Para ele existem dois pares de conceitos fundamentais para a compreensão do cinema: “o real e o irreal” e o “verdadeiro e o falso”. Como exemplo cita o fenômeno cristalino, no qual existe uma troca entre o límpido e o opaco. É preciso discernir sobre esses conceitos e o discernimento surge a partir do momento em que enxergamos que “o falso não é um erro ou uma confusão, mas uma potência que torna o verdadeiro indecidível”.

Sendo assim, o imaginário está na encruzilhada entre esses dois pares, pois o imaginário é a indiscernibilidade entre o real e o irreal. Ainda para o filósofo, o imaginário é um conjunto de trocas. Imaginar é fabricar imagens. Deleuze não acredita numa especificidade do imaginário, ele acredita, respectivamente, num regime orgânico das imagens que corresponde à imagem-movimento, um modelo de verdade; e em outro regime cristalino que substitui o modelo de verdade pela potência do falso como devir. Com relação a esses aspectos exemplifica citando Nietzsche: “Nietzsche é o exemplo de um discurso filosófico que se precipita em num regime cristalino, substituindo o modelo verdadeiro pela potência do devir, a organização por uma vida não orgânica, os encadeamentos lógicos pelos reencadeamentos páticos, libertinos (aforismos)”. Portanto Deleuze considera através de suas análises que, o que pretende na verdade não é uma análise do imaginário, mas uma análise do regime de signos num sentido taxonômico, uma classificação das imagens e ou dos signos.


DELEUZE, Gilles. Dúvidas sobre o imaginário. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

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